quarta-feira, 29 de junho de 2011

Thor e o rapto de Loki

Loki, o deus das confusões, tinha uma predileção especial pelo casaco de falcão da deusa Freya - um casaco mágico que permitia àquele que o vestisse voar livremente feito aquela ave. Um dia, resolveu tomá-lo emprestado e saiu a viajar pelo mundo. Voou por tudo até chegar, finalmente, ao castelo do gigante Geirrod.
- Ufa!... Vou fazer uma parada... - disse ele, pousando na amurada.
Geirrod, no entanto, estava por perto e avistou aquela estranha ave pousada numa das torres do seu castelo.
- Que falcão estranho! - disse ele a um criado próximo.
De fato, nunca ambos haviam visto um falcão tão feio e desengonçado.
- Vá buscá-lo - disse Geirrod ao lacaio. - Deve ser um espião disfarçado. O criado cumpriu a tarefa com tanta eficiência que, em poucos instantes, estava de volta com a ave presa pelo pescoço.
- Veja seus olhos - disse o gigante - não são de uma ave, mas de uni homem. Vamos, impostor, diga logo quem é e o que pretende!
Loki, surpreendido pela violência do gigante, preferiu calar, mesmo tendo o pescoço quase esganado pelos dedos de ferro do seu algoz.
- Ah, não vai falar? - disse Geirrod, voltando-se para o criado - Prenda-o em uma caixa e o deixe sem alimento até que resolva abrir o bico.
Três meses durou a agonia de Loki, até que um dia o gigante reapareceu c rolhou de dentro da caixa um falcão desmilingüido e com as penas todas amassadas.
- Es...tá bem.... - disse Loki, num fio de voz. - Vou con...tar... tudo...
Loki confessou a sua identidade, o que fez o gigante dar um sorriso tão satisfeito que lhe arreganhou os dentes até o siso.
- Vejam só: é o companheiro do Thor, o nosso maior inimigo! - disse Geirrod, esfregando as mãos. - Muito bem, franguinho, tenho uma proposta a lhe fazer.
Geirrod expôs, então, os termos do seu acordo: Loki seria liberto somente se conseguisse atrair Thor para o seu castelo.
- Mas, atenção: deverá vir sem o martelo ou o cinto de força - acrescentou o gigante, pois sabia perfeitamente que se o deus do trovão viesse com suas armas, promoveria ali um verdadeiro massacre.
Loki partiu sem o casaco de Freya - que ficara em garantia - e, após implorar muito, conseguiu convencer Thor a fazer o que o gigante queria.
- Com ou sem martelo, gigante nenhum é páreo pra mim! - disse Thor, confiante.
Os dois partiram numa manhã clara, porém, muito fria - como de hábito, naquelas regiões. Andaram, andaram, andaram até que chegaram à casa de uma giganta - o que significava que já estavam nas proximidades do castelo de Geirrod.
- Bom dia, senhora - disse Thor, gentilmente. - Estamos indo até o castelo de Geirrod e gostaríamos de renovar nossas forças antes do encontro, pois é quase certo que o tempo vai fechar por lá...
- O castelo de Geirrod? - exclamou a giganta, arregalando dois olhos enormes como duas luas. - Oh, pobrezinhos, serão mortos com toda a certeza!
Loki sentiu um calafrio quanto à parte que lhe tocava.
- Thor é forte o bastante para salvar a nós dois - disse o ladino, reforçando as duas últimas palavras.
- Não, não! - retrucou a giganta, sem convencer-se disto. - Não devem se fiar em suas próprias forças. - Ela correu até seus aposentos e retornou de lá com um cinto de força, um pesado porrete e umas luvas de ferro. - Aqui está: leve tudo isto, valente peregrino, para que possa se safar das ciladas do perverso Geirrod.
Thor aceitou os presentes e logo os dois estavam de volta à estrada. Depois de andar mais um longo trecho, chegaram às margens do rio Vimur, com águas não muito profundas, mas que tinha uma forte correnteza.
- Vamos atravessá-lo a pé - disse Thor.
Dito isto, o deus do trovão meteu-se logo na água, segurando numa das mãos o porrete e tendo ao lado Loki, que agarrava a todo instante o seu cinto com medo de ser levado pela correnteza.
Iam já a meio do trajeto quando Loki - que, como bom medroso, tinha um faro apurado para o perigo - alertou o companheiro:
- Não lhe parece que as águas estão subindo rapidamente?
Thor nada havia percebido até então, importunado que estava pelos agarra-mentos constantes do cauteloso colega. Mas, avisado do fato, olhou para baixo e percebeu que, realmente, a água, que antes dava-lhe com folga pela cintura, agora já lhe ia pelo peito sem nunca parar de subir.
- Apressemos o passo - disse ele.
Neste mesmo instante, Loki avistou alguém na outra margem um pouco mais acima de onde estavam.
- Veja, Thor! - gritou Loki, apontando naquela direção. - Seguramente que aquela criatura tem algo a ver com tudo isto!
Thor ergueu a cabeça e avistou uma enorme mulher agachada na água com as saias arregaçadas até a cintura. Como se tratava de uma giganta, a água sequer lhe batia nos joelhos e, por isso, ambos puderam ver perfeitamente o que ela fazia.
- Maldição! - esbravejou Thor. - O que está fazendo?
- Ora, não está vendo, boboca?... - gritou a rotunda giganta, sem ruborizar-se ou interromper a sua tarefa.
Ela era Gialp, uma das filhas de Geirrod, e, certamente, não estava ali à toa.
- O que faremos, agora? - disse Loki, que já estava trepado nos ombros do deus.
- Só há um meio de represar um rio - disse Thor, com segurança - é estancando-lhe a fonte. Arremessou, então, o seu porrete, acertando em cheio o crânio da giganta, que foi cair morta dentro da água. Infelizmente, a solução trouxera um novo problema, pois o sangue que jorrava da cabeça rachada vertia cm ondas, aumentando a enchente e tornando escarlate o leito do rio.
Thor apertou o passo - a esta altura já inteiramente submerso -, enquanto Loki permanecia acavalado em seus ombros, trazendo apenas a cabeça para Cora da água, como se ele próprio fosse um gigante. Por sorte, ambos já estavam bem próximos da margem e conseguiram se safar a tempo.
Depois que recuperaram o fôlego, os dois tomaram uma íngreme encosta o galgaram-na, penosamente, até chegar ao castelo do temível gigante.
- Cá estamos - disse Thor. - Vamos ver, agora, o tal Geirrod!
Loki sentiu um tremor afrouxar-lhe os joelhos, pois estava de volta ao cenário de seus padecimentos. "Sabem as Nornas, o que mais me espera!", pensou ele, referindo-se as deusas que tramam o destino.
No entanto, ao se apresentar, foram surpreendidos por uma amável recepção prodigalizada pelo solerte gigante. Ele estava sentado a uma mesa gigantesca repleta de iguarias, que ocupava quase todo o salão.
- Ora, sejam bem-vindos! - disse Geirrod, erguendo-se e batendo com estrondo as palmas das mãos em suas nádegas gigantescas, que era a sua maneira ímpia de se regozijar. Um som cavo reboou pelas paredes e, somente quando o último eco se perdeu nos confins gelados do castelo, é que ele recomeçou:
- Thor, quero que saiba que é uma honra imensa tê-lo em minha casa; quanto a você - disse, piscando um olho matreiro para um Loki apavorado -, já nos conhecemos bem, não é? Afinal, desfrutou por três meses da minha generosa hospitalidade!
Loki balbuciou algo inaudível, enquanto Geirrod ria e malhava outra vez, à toda força, as suas nádegas descomunais. Depois se sentou e convidou os visitantes a lhe fazer companhia. Infelizmente a segunda parte da sua hospitalidade esteve longe de condizer com a primeira, pois Geirrod acomodou-os no mesmo estábulo onde ficavam as cabras.
Ao centro do aposento havia apenas uma única cama, cujos pés não se enxergavam, ocultos pela armação. Thor, exausto da viagem, atirou-se ao leito para descansar. Loki, mais cauteloso, preferiu dormir em pé, pois aquela cama solitária lhe parecera de mau agouro; além do mais, suas suspeitas aumentaram quando percebeu no teto um renque inteiro de lanças com as pontas afiadas apontadas para baixo, bem na direção do suspeitoso leito.
Thor, é claro, não era tão tonto que não houvesse percebido também aquele enfeite bizarro; porém, depois de se certificar bem, chegara à conclusão que não havia perigo algum, pois as lanças estavam solidamente presas ao teto. Deixando de lado, então, as preocupações, Thor ajeitou-se no leito para dormir - ou antes, para roncar. Roncou, de fato, um bom pedaço, como um perfeito deus do trovão, até acordar, de repente, pois sentira um ligeiro solavanco sacudir o seu leito. Entreabriu um olho (ele dormira de barriga para cima, por precaução) e viu que as lanças ainda estavam lá, solidamente presas ao teto. Entretanto, pareciam estar - ou seria apenas impressão? - ligeiramente mais próximas.
"Bobagens!", pensou cruzando as mãos sobre o ventre e recomeçando a roncar.
Loki, a seu turno, também caíra num sono profundo, desabado no chão recoberto de palha. Mais um tempo passou e Thor acordou novamente, por causa de um novo sacolejão. Desta vez pareceu escutar, nitidamente, uma voz abafada que censurava alguém. Abriu os olhos e enxergou o teto outra vez. Só que, desta feita, as lanças pareciam estar ainda mais perto - ou seria mero efeito da sugestão?
- Ora bolas, disse ele, virando-se de lado.
Antes de cerrar os olhos, outra vez, viu Loki adormecido, que roncava também lá embaixo.
"Depois fala de mim, o porcalhão", pensou, ajeitando-se melhor em seu leito. - "Mesmo desta altura, ainda posso escutar a sua tuba perfeitamente!"
Então deu-se conta, afinal, de que algo errado ocorria com a cama. Abriu os olhos e viu seu companheiro bem pequenino lá embaixo. Num reflexo, virou-se para diante, somente para descobrir que as pontas das lanças que pendiam do teto estavam quase metidas no seu nariz. Descobriu também que, de pé, já nau podia mais ficar, mas que ainda podia voltar a cabeça para ver o que havia debaixo da cama. Ao fazê-lo, porém, verificou que um rosto enorme, balofo e horrendo o encarava, coberto por gotas de um suor espesso como o azeite. Virou-se, imediatamente, para o outro lado e viu outro rosto não menos pavoroso que o primeiro. Tratavam-se de duas gigantas, filhas de Geirrod, que o empurravam, com cama e tudo de encontro às lanças.
- Acorde, Loki, idiota! - bradou Thor, sem poder ver mais se ele o escutava. A ponta de uma das lanças já imprimia para o lado a ponta do seu nariz e Thor tateou, desesperadamente, à procura do seu porrete.
Ali estava ele!, pensou aliviado, ao encontrar sua arma. Imediatamente, enfiou-o entre as lanças e começou a empurrar de volta o leito para baixo, e o fez com tal força, que um ruído de algo que se parte, reverberou pelas paredes. No mesmo instante a cama veio com tudo para baixo, esmagando as duas gigantas - pois as suas colunas haviam se partido, quando Thor dera o empurrão prodigioso.
Loki acordara com o terrível estrondo apenas para se deparar com a visão horrenda do leito repousado sobre alguns braços e pernas esmagados que ainda se contorciam e uma piscina de sangue ao redor.
Thor ergueu-se de um pulo e, empunhando o seu porrete, dirigiu-se ate' o custeio. O dia amanhecia e o deus, com um chute, deitou abaixo a porta. Foi encontrar o perverso Geirrod sentado à mesa, como de hábito.
No cocho outra vez, besta insaciável? - bradou Thor ao gigante, julgando que ele fazia já o seu café da manhã.
- Outra vez? - disse o gigante, percebendo a luz do dia, que penetrava ainda de forma discreta pela porta. - Oh, não, está enganado! Estou ainda jantando...!
Thor, então, que trazia em cada uma das mãos as cabeças balofas das suas filhas, arremessou-as à mesa, com um grito feroz:
- Junte isto ao repasto...! - As duas cabeças rechonchudas rolaram pela mesa até irem colar as suas bocas numa montanha de purê de batatas, onde permaneceram quietas, parecendo bastante satisfeitas.
Geirrod, percebendo a má disposição de ânimo do seu hóspede, ergueu-se e correu até a lareira, rebolando o seu gigantesco traseiro. Ali, tomou um longo par de tenazes e com elas recolheu do fogo uma grande barra de ferro incandescida.
- Segura esta, bobão...! - disse ele, arremessando o terrível projétil.
Thor desviou-se, agilmente, e o lingote foi derrubar uma parede às suas costas; porém, como estivesse com suas luvas de ferro, pegou o lingote com as próprias mãos e o arremessou de volta para o gigante.
Apavorado, Geirrod correu a se esconder atrás de uma larguíssima coluna de pedra. Mas, como o gigante fosse fantasticamente gordo, foi como se uma melancia tivesse ido se esconder atrás de um palito. O projétil, no final de tudo, atravessou a coluna, o crânio do gigante, e fendeu ainda a parede externa do castelo, indo perder-se pelo mundo, com os pedaços dos miolos do gigante aderidos a ele.
E, foi assim, se as crônicas não exageraram, que o poderoso Thor liquidou o temível gigante Geirrod.




Às vezes eu fico imaginando como o Loki ficou de falcão! Ele deve ser bem feio! Ashuahsuahushauhsuahsua

O roubo do Brisingamen

Freya, a deusa nórdica do amor, havia ganho dos anões Brisings, em troca de alguns deliciosos favores, o mais belo colar de todo o mundo. Como o negócio, no entanto, fizera-se às ocultas (pois Freya, como uma perfeita negociante, não gostava de tornar públicos os seus acordos), imaginou que ninguém ficara sabendo de nada.
Havia, porém, um indesejado - o perverso deus Loki -, que assistira escondido a entrada dela na caverna dos anões altas horas da madrugada.
"Oh, céus!", exclamara o enxerido. "Mas até com anões ela já anda?"
Ninguém ignorava que Freya não era nenhum modelo de virtudes, e que era mesmo o oposto de Frigga, a esposa de Odin, um exemplo perfeito de piedade, de virtude, de retidão moral - e de chatice. Não à toa, o mais poderoso dos deuses volta e meia permitia-se afrouxar um pouco os seus rígidos princípios e dar também algumas "escapadinhas" em busca de uma companhia menos sufocantemente perfeita, o que ele somente encontrava, quando caía nos braços de Freya, a deusa deliciosamente imperfeita.
Sabedor disto tudo e desejoso também de se apoderar do magnífico objeto, além de provocar mais uma discórdia entre os deuses - uma vez que nada podia lhe dar mais prazer do que injetar um pouco de emoção num mundo que lhe parecia já insuportavelmente enfadonho, Loki decidiu entrar logo em ação.
- Odin, meu caro, você não sabe da maior! - disse ele, entrando nos majestosos salões de Gladsheim, onde o deus estava assentado em seu trono.
- O que foi desta vez? - disse o velho deus, franzindo as sobrancelhas, pois a presença do importuno era sempre o prenuncio infalível de nova encrenca.
- Sua esposa está por peito? - disse Loki, passando o salão em revista.
- Não, está assistindo, escondida atrás do altar, ao vigésimo culto do dia que lhe prestam em Midgard - disse o deus com um olhar enfadado, que parecia dizer: "Como gosta de ser cultuada!"
- O problema é com a bela Freya, ó deus...
Odin ergueu um pouco a cabeça, pois este assunto lhe interessava.
- O que há com ela?
- Anda aprontando de novo, se me permite a expressão.
- Oh, Freya, você não sossega nunca!... - disse o deus, sacudindo a cabeça.
- Não seria melhor pôr logo um freio na adorável Freya?
Odin olhou-o com cólera.
- Mais uma gracinha e será expulso daqui!
- Perdão, poderoso Odin - disse Loki, curvando a cabeça - pretendia apenas animá-lo um pouco.
- Com quem ela anda, agora?
- Com anões - disse Loki, baixando a voz.
- Ah, não...! - disse Odin, cobrindo a testa com a mão em pala.
- E não é só com um...! - disse Loki. - São vários!
Sem saber direito, se o maligno deus debochava, Odin cobrou-lhe explicações mais detalhadas. Loki explicou-lhe toda a história e o velho deus escutou com uma ira crescente, pois é sabido, que os ciúmes dos amantes, não raro, excedem aos dos próprios maridos. Tão logo a matraca de Loki cessou de falar, Odin tomou o mensageiro da desgraça pelo pescoço e lhe disse, rilhando os dentes:
- Tire o colar dela imediatamente! Nenhum castigo lhe poderá ser pior.
- E-eu, poderoso deus?
- Você mesmo! - respondeu Odin. - Não fez a intriga? Agora conserte!
- Mas como farei para adentrar os portões de Sessrymnir? - disse Loki, referindo-se ao palácio onde morava a deusa. - Todos sabem que tem portas inexpugnáveis e que somente ela detém as suas chaves!
- Não me interessa, dê um jeito! Quero este colar em minhas mãos, amanhã de manhã, ou você pagará por tudo isto!
"Aí está, língua de trapo!", pensou Loki, retirando-se com um tremendo abacaxi nas mãos para descascar durante a noite.
Na mesma hora, partiu para o palácio de Freya, pois não havia tempo a perder. A noite já caía e ele ainda tinha uma tarefa ciclópica a cumprir: tirar das mãos da mais vaidosa das mulheres o seu enfeite mais cobiçado!
Loki chegou, rapidamente, ao local onde ficava o majestoso palácio, graças aos seus sapatos mágicos, que tal como os do Hermes grego, tinham a propriedade de voar. "Um magnífico lugar para se morar, aquele, não resta a menor dúvida!", pensou, enquanto observava os portões dourados de Sessrymnir. Ao alto, as cúpulas prateadas afinavam-se até parecer longas espadas afiadas prestes a espetar o traseiro acolchoado do céu, que estava recoberto de nuvens brancas e algodoadas.
"Mas, como farei para entrar?", pensou o deus, cocando a cabeça.
Mesmo sabendo que não teria sucesso, resolveu tentar forçar os portões:
- Hmf! - fez ele, com as duas mãos apoiadas a uma das portas. Nada.
Colou, então, o ombro direito ao portão e tentou novamente:
- Hmmmfff! - fez ele, sentindo o ouro gelado esfriar-lhe o osso do ombro. Nada, outra vez.
Loki lembrou-se, então, de que tinha o poder de se metamorfosear em qualquer ser que desejasse. Primeiramente, pensou em se transformar em um possante dragão ou um troll gigantesco e botar abaixo a droga da porta. Mas abandonou logo o projeto: com todo o estrépito que produziria, acabaria não só por acordar a deusa, mas Asgard inteira. Retomando o bom senso, resolveu estudar melhor o obstáculo: com um olho fechado e o outro extremamente arregalado pôs-se a esquadrinhar a espessura das frestas que havia entre uma porta e a outra. Tentou introduzir o dedo bem na junção das duas pesadas folhas, mas descobriu que naquela fissurazinha nem sequer a sua unha entrava.
- Maldição! - exclamou ele, baixinho.
No mesmo instante uma neve espessa começou a cair sobre os seus ombros, irritando-o ainda mais. Ajoelhou-se, então, o máximo possível - até assumir uma posição, verdadeiramente, constrangedora - só para observar a espessura da fenda sob a base das portas. Com uma das mãos, raspou a neve ajuntada, soprando os minúsculos farelos. Não, nem uma formiga passaria por ali!...
"Realmente, terei de me metamorfosear num ser verdadeiramente minúsculo para poder ultrapassar qualquer fenda ou buraco...", pensou desanimado e, como nem ele nem deus algum conheciam ainda os seres microscópicos, descobriu que estava, de fato, num beco sem saída.
- Buraco?! - exclamou de repente. - É claro, o buraco da fechadura!
Sua inteligência dava os primeiros sinais de ter acordado. Encontrou logo a fechadura, mas estava escuro demais para perceber algo, sequer se havia meio de entrar ali e sair do outro lado.
- Só há um jeito! - disse ele, transformando-se numa pequena formiga.
Mas ao se ver no solo sob esta minúscula forma, descobriu também que aumentara em pelo menos dez vezes o trajeto até a entrada da fechadura, que estava, agora, lá no alto, muito acima da sua cabeça (que não era maior do que a cabeça de um alfinete). Suas duas anteninhas vibraram de ira e frustração.
- Irra! Uma burrada atrás da outra! - gritou, sabendo, que sua vozinha, ridiculamente inaudível, jamais seria ouvida.
Loki-formiga começou, então, a escalar a gigantesca porta, enquanto flocos de neve do tamanho de nuvens passavam raspando sobre ele. Se formigas suam, esta estava inteiramente encharcada quando alcançou a entrada. O buraco, agora, se tornara bem espaçoso e ela pôde penetrar tranqüilamente por ele.
- Droga, mas continua escuro!... - disse Loki, tateando dentro da fechadura, que era um emaranhado de curvas e voltas, por onde a chave devia se encaixar. Apesar de tudo, finalmente conseguiu alcançar o outro lado, quando, então, readquiriu a sua forma habitual. Seu corpo estava coberto de graxa, mas conseguira o seu objetivo: invadir o até então inexpugnável palácio de Freya.
Após atravessar os salões de Sessrymnir, Loki subiu até ao quarto da deusa. A porta estava fechada, porém, não trancada. Ele a empurrou e se deparou com uma peça grande e confortável, onde todo o luxo que poderia assistir uma deusa, estava à sua disposição: quatro toucadores de ouro repletos de objetos e acessórios de embelezamento; uma grande lareira, onde um resto de fogo ainda ardia, iluminando aquele cenário de sonho; e cortinas vaporosas, que se moviam, suavemente, impelidas por uma suavíssima corrente de ar. E, finalmente, ao centro, estava o majestoso leito onde a deusa descansava e tratava de seus aprazíveis negócios.
Entretanto, nenhum destes adornos e enfeites podia se igualar à beleza maravilhosamente franca e natural de Freya adormecida: apesar de todo o frio, o calor da lareira havia esquentado o quarto a tal ponto que a deusa havia afastado o pesado cobertor - feito da pele alvíssima de um urso polar -, deixando à mostra o desenho perfeito do seu corpo, que estava protegido apenas por uma veste tão delicada e transparente, que parecia tecida da mais fina das teias de aranha.
Loki desviou imediatamente o olhar daquele corpo maravilhoso e tratou logo de procurar o colar. Mas percebeu que esta seria uma tarefa mais ao alcance do cérebro do que do mero esforço físico.
"Onde Freya guardaria seu bem mais precioso?", perguntava-se o astuto deus, investigando silenciosamente o interior dos armários, mas sabendo de antemão que dificilmente o encontraria ali. Então, quando revirava pela milésima vez os seus estojos, teve uma súbita iluminação: "Seu bem mais precioso há de estar no lugar mais precioso deste quarto!", pensou, aplaudindo-se por dentro.
Imediatamente Loki voltou-se para o bem mais precioso que havia dentro daquelas quatro paredes: o próprio corpo de Freya. Pé ante pé, aproximou-se do leito, somente para ter a confirmação do que já imaginava: em cima de seu divino colo subia e descia mansamente, ao sabor da sua respiração, o maravilhoso adorno.
- Aí está o querido! - disse ele, bem baixinho, sem poder conter a euforia.
Tal como uma criança que adquiriu um brinquedo novo desesperadamente ansiado, a deusa resolvera dormir com seu novo colar. Só havia, contudo, um pequeno problema: ela estava deitada de barriga para cima e o fecho do colar estava localizado em suas adoráveis costas.
Loki aguardou alguns instantes para ver se se ela virava ao menos de lado para lhe possibilitar o furto, mas a deusa raramente se mexia e, quando o fazia, parecia hesitar, como se uma voz interior lhe advertisse do perigo, tal como faz a menina que dorme abraçada à sua boneca nova e invejada sem dela jamais despegar-se. Novamente Loki teve de empregar toda a sua astúcia, transformando-se, desta vez, em uma pequenina pulga. E tudo teria saído bem se, em um novo erro de cálculo, não tivesse ido cair dentro do cobertor felpudo.
Loki permaneceu ali por um longo tempo, tentando desvencilhar-se dos fiapos do pêlo, o qual era tão espesso, que mais parecia uma alva e inextricável selva. Mas conseguiu, afinal, e tão logo se viu livre do labirinto de algodão, postou-se em cima da coxa direita de Freya. Uma minúscula penugem dourada (que somente uma pulga poderia perceber) a cobria, e foi nesta perfumada e roliça elevação que ele recomeçou seu trajeto até chegar a seu objetivo, que era o colar. Foi subindo, subindo, subindo até que, tendo recém costeado uma pequena floresta dourada, distraiu-se - naturalmente encantado por aquela visão - e foi cair numa minúscula caverna.
- Essa não! - exclamou o pequeno Loki-pulga. - Onde estou?
Mas, embora não deixasse de ser mais um contratempo, aquela caverninha não deixava, afinal, de ser um local aconchegante. Além do mais, Loki não precisou, senão, dar um pequeno salto para se ver livre dela e descobrir que estivera o tempo todo no umbigo da deusa, privilégio extravagante, que nem mesmo o mais poderoso dos deuses um dia alcançara.
- Adiante! - disse a pulga, sempre saltitando.
De pulo em pulo, foi progredindo até que se deparou com duas belas e simétricas montanhas. Um pouco mais atilado, desta vez, preferiu seguir pelo desfiladeiro que havia bem no centro dos dois picos majestosos. Percorreu o delicioso trajeto sem qualquer problema até alcançar, finalmente, o próprio colar, que estava um pouco abaixo do alvo pescoço. Chegara, agora, o momento de pôr em prática a última parte do plano.
- Desculpe, Freya adorável, mas agora vou machucá-la um pouquinho! -disse o Loki-pulga, dando uma valente mordida no colo da deusa.
Freya levou instintivamente a mão até o seio ferido e deu um ligeiro suspiro, virando-se de lado - e isto era tudo o que Loki queria. Por isso, readquiriu logo a sua forma original e depois de ter desapertado o fecho, tomou, finalmente, em suas mãos o Brisingamen, o famoso colar de Freya.
No mesmo instante o ladrão desapareceu do palácio, vaidoso do seu triunfo.
***
Loki já ia longe, quando percebeu que estava sendo perseguido.
- Raios! - disse ele, apertando o passo de seus alados sapatos. - É aquele maldito intrometido do Heimdall!
Loki referia-se ao famoso vigia de Asgard, que, com seus olhos agudos e penetrantes, era capaz de enxergar tudo quanto se passava no universo, mesmo nas maiores distâncias; havia uma rixa permanente entre estas duas divindades e qualquer pretexto era o bastante para que ambos se engalfinhassem. Heimdall, então, ao ver que Loki apertara o passo, esporeou com mais vigor o seu cavalo branco, que em matéria de velocidade somente perdia para Sleipnir, o cavalo de oito patas de Odin e o mais veloz do universo.
Quando Heimdall estava a um passo de alcançá-lo, Loki resolveu recorrer ã sua habitual arte da transmutação o se transformou numa grande chama.
- Quero ver pegar-me, agora, intrometido! - disse ele, cuspindo labaredas para todos os lados.
Mas Heimdall também conhecia os segredos desta antiga arte e se transformou numa imensa nuvem cinza e tempestuosa. O céu inteiro recobriu-se de escuridão e, num piscar de olhos, começou a desabar uma chuva torrencial, que um vento selvagem lançava para cima da fogueira infernal na qual Loki havia se convertido. Mas este, pressentindo a derrota, tornou-se imediatamente um possante urso polar.
- Oh, vem com água, então? Pois seja! - disse o urso, abrindo sua bocarra repleta de dentes amarelos. - Afinal, este calor me deu uma sede infernal!
Heimdall resolveu, então, contra-atacar com as mesmas armas do inimigo: imediatamente transformou-se em outro urso ainda maior, e partiu para cima de Loki. Este tratou de se esconder nuns rochedos escarpados que havia por perto, metamorfoseando-se rapidamente numa foca. Heimdall também se transformou em outra e, deste modo, começou uma verdadeira perseguição pelos rochedos até que a foca Loki arremessou-se para dentro da água gelada, levando atrás a foca inimiga, que estava disposta a segui-lo até as tétricas moradas de Hel, a deusa infernal. Deste modo, percorreram os mares gelados e cinzentos de toda a costa nórdica: Loki ia adiante, contornando velozmente os icebergs que surgiam pela frente, enquanto Heimdall seguia ziguezagueando no seu encalço, infatigável.
- Desista, tratante, e devolva já o colar! - gritava a foca perseguidora, enquanto a foca perseguida exclamava, irada: - Largue da minha cauda, intrometido, e volte para o seu portão antes que seja demitido por deixá-lo desprotegido!
A lembrança de suas funções de guardião da ponte Bifrost, que conduzia a Asgard, no entanto, só serviu para dar mais agilidade a Heimdall, que redobrou a velocidade a tal ponto, que Loki se viu obrigado a subir para a terra firme, onde, sob um gigantesco iceberg, travou-se uma luta severa entre os dois contendores - ainda sob a forma de focas. Mas como Heimdall fosse mais forte, Loki duramente golpeado, acabou por se render e entregar o colar ao guardião.
- Que isto lhe sirva de lição! - disse Heimdall, pronto para retornar ao palácio de Freya a fim de lhe devolver o colar e retomar o mais rapidamente possível as suas funções à porta principal de Asgard.
- Nós nos vemos, novamente, na Ragnarok...! - disse Loki de olho roxo, referindo-se ao grande combate final, que oporia os deuses aos seus inimigos.
E assim Freya recuperou o seu belo presente, não sem antes ter tido que dar algumas explicaçõezinhas a Odin, o seu eterno amante, a respeito da maneira pouco ortodoxa pela qual o havia obtido - mas nada que não tirasse de letra; afinal, diante de sua astúcia, nada valiam os estratagemas de Loki e muito menos as rabugices do "deus caolho", como chamava Odin nos seus momentos de ira.



O Loki se deu bem, perdido nos “montes” ahsuahushauhsuahsuhaushuahus