O deus Thor, filho de Odin, estava viajando rumo a Jotunheim, a terra dos Gigantes, junto com Loki e seu criado Thialfi, quando chegaram todos a uma grande floresta.
- Alto! - disse ele, erguendo o braço. - Vamos parar aqui e procurar um lugar protegido para passar a noite.
Cada qual seguiu para um lado até que Thor exclamou:
- Acho que encontrei um bom lugar!
Thor estava diante da entrada de uma imensa caverna; portando um archote, ele adentrou-a junto com os demais.
- É um lugar amplo e bem seco! - disse o servo Thialfi.
- Será que não é a toca de algum animal? - perguntou Loki.
- Vamos ver! - disse Thor, avançando mais para o interior.
Após investigar com cautela o local, perceberam que estava desabitado.
- Vejam! - exclamou Loki. - Há várias câmaras por aqui!
De fato, a caverna bifurcava-se em cinco câmaras amplas e separadas do tamanho de grandes salões.
- Vamos passar a noite nesta - disse o deus do trovão, acomodando-se junto com Loki e Thialfi na mais ampla das câmaras.
Os viajantes dormiram um bom pedaço da noite, quando, subitamente, foram despertados por um tremendo baque seguido de um ruído assustador, que lembrava o grito de mil ursos.
- O que foi isto? - exclamou Loki, pondo-se em pé.
Thor e Thialfi ficaram alertas, mas ao ruído seguiu-se um profundo silêncio. Então, todos voltaram a dormir e, como o ruído assustador não voltasse a acontecer, estiveram em paz o restante da noite.
Na manhã seguinte, saíram todos da caverna.
- Que ruído pavoroso terá sido aquele? - indagou Thialfi, que ainda estava intrigado com o incidente da noite.
- Esqueça - disse Thor -, florestas escuras como estas são pródigas em ruídos misteriosos.
Mas, o deus estava enganado, pois, logo adiante, deram de cara com um monstruoso gigante que, estirado na relva, ainda dormia profundamente.
- E esta agora? - disse Thialfi, amedrontado.
- Vamos embora, antes que ele acorde! - sussurrou Loki, dando as costas do gigante. Infelizmente, a orelha dele era tão grande, que captou o sussurro dos três e, logo, seus gigantescos olhos abriram, cobertos por remelas do tamanho de batatas fritas.
- Quem são vocês e o que fazem aqui? - gritou a criatura prodigiosa, erguendo-se com uma rapidez espantosa para alguém do seu tamanho e se pondo i procurar algo com grande avidez.
- Sou o poderoso Thor e venho com meus companheiros de Asgard no rumo de Jotunheim - disse o deus, empunhando por cautela o seu martelo Miollnir.
Mas o gigante continuava a andar de lá pra cá, sem dar muita atenção aos forasteiros até que, de repente, deu um grande grito:
- Ah, achei!...
Era a sua luva, que Thor e os demais haviam tomado por uma caverna. E a câmara, que todos haviam achado confortável e espaçosa, não era mais do que o polegar da luva!
- Sou Skrymir e vou indo também para Jotunheim - disse ele, enquanto ajeitava a luva. - Por que não vamos todos juntos?
Loki deu uma olhadela para Thor, mas este fez um sugestivo sinal com o martelo para que aceitassem o convite do gigante.
Após uma rápida refeição, seguiram em frente, tentando a muito custo acompanhar as enormes passadas do gigante, que andava adiante deles, balançando nas costas sua ruidosa mochila de provisões. Ao ver, entretanto, que os asgardianos também levavam algum mantimento, declarou com a mais cândida das vozes:
- Hum... vejo que vocês também têm o seu farnel! Partilhemos, então, como bons companheiros de viagem, as nossas provisões...!
Skrymir tomou as mochilas dos três e as introduziu dentro da sua e, com isto, estava feita a partilha.Assim, viajaram durante todo o dia com o gigante regalando-se de hora em hora, ao mesmo tempo em que os outros penavam sede e fome contínuas, até que o dia escureceu novamente e todos acomodaram-se sob uma grande árvore para descansar e passar a noite. O gigante, entretanto, antes de começar a roncar disse aos outros para que se servissem, livremente, dos mantimentos que havia em abundância na sua mochila, acrescentando cinicamente: "dormir de estômago vazio provoca pesadelos".
Não houve uma transição muito grande entre suas palavras e seu sono, pois antes que sua boca se fechasse novamente, fez-se ouvir por toda a floresta o som de seu poderoso ronco. Enquanto isso, Thor, tão faminto quanto os seus companheiros, tentava abrir a maldita mochila. Infelizmente, ela estava tão bem amarrada, que foi impossível desatar-lhe um único nó. Depois de lutar por um longo tempo com os nós cegos, Thor acabou por perder de vez a paciência e exclamou, irado:
- Definitivamente, este gigante sujo está debochando de nós!
O deus agarrou o seu martelo e avançou para o gigante, que permanecia adormecido, e desfechou um furioso golpe em sua testa. Um estrondo cavo ressoou por toda a floresta, como se um pavoroso trovão tivesse eclodido.
- O que houve? - disse Skrymir, abrindo um de seus olhos. - Oh, esta árvore deve estar cheia de ninhos de pássaros, pois acaba de cair uma pena de um filhotinho sobre a minha testa. - Depois, voltando-se para Thor e seus companheiros, perguntou: - Como é, já fizeram a refeição...? - Mas, antes que o deus pudesse responder - e certamente reclamar - Skrymir já havia adormecido outra vez.
Thor, inconformado com a desastrada tentativa, empunhou novamente o seu martelo e chegando ao pé do gigante desferiu-lhe novo golpe, agora, sobre o topo do crânio. Skrymir acordou e levando a mão à cabeça, resmungou:
- Diacho! Agora foi uma noz que caiu! - Em seguida, virou de lado e voltou a dormir, como se nada houvesse acontecido.
Loki e Thialfi observavam as infrutíferas tentativas de Thor sem nada dizer, temerosos de que a ira do deus acabasse por se voltar contra eles. Thor resolveu esperar que o dia começasse a amanhecer para tentar um último e definitivo golpe. "De manhã estarei descansado e, então, darei cabo deste miserável!", pensou, acomodando-se para dormir.
Tão logo o sol raiou, ele se pôs em pé, mais disposto, embora ainda esfomeado e percebendo que o gigante ainda dormia profundamente, tomou de seu martelo e aplicou-lhe um golpe tão violento, que o instrumento se enterrou até o cabo dentro da cabeça do desgraçado, que acordou com um grande bocejo.
- Ou estou muito enganado - disse ele, alisando os cabelos - ou algum passarinho largou uma titica sobre a minha cabeça! - Pondo-se em pé, Skrymir conclamou os demais para que também acordassem.
- Vamos, preguiçosos...! - disse ele, estendendo os braços e derrubando dezenas de árvores à direita e à esquerda. - O sol está alto e Jotunheim já está perto!
Já haviam começado a andar, quando Skrymir resolveu advertir-lhes:
- Preparem-se, pois lá encontrarão gigantes de verdade!
- Quê? - exclamou Thialfi, incrédulo. - São ainda maiores do que você?
- Maiores...? Você deve estar brincando! - disse o gigante, dando uma sonora gargalhada. - Meu nanico, logo vocês verão que eu não passo de um anão perto deles!
Andaram mais um pouco, até que chegaram a uma grande encruzilhada.
- Muito bem, aqui nos separamos - disse Skrymir abruptamente.
Os três entreolharam-se, surpresos, não sem uma ligeira e indisfarçada manifestação de alívio.
- Mas você não vai para Jotunheim? - perguntou Loki.
- Não, vou para o norte, mas vocês devem seguir a estrada que vai para leste. Dou-lhes, entretanto, o conselho para que evitem se mostrar arrogantes quando chegarem à terra dos gigantes, pois os habitantes do lugar, e em especial Utgardloki, não admitem que forasteiro algum demonstre presunção diante deles - ainda mais, umas formiguinhas feito vocês.
Antes que Thor pudesse responder, o gigante já estava tomando o seu rumo.
- Adeus, amigos! Foi um prazer viajar ao seu lado! - disse Skrymir, lançando para as costas a sua recheada mochila. Com duas ou três passadas, desapareceu pela floresta, deixando Thor e os outros a caminho do país dos gigantes.
***
Os três companheiros já haviam caminhado bastante desde a separação, quando avistaram uma cidade no fim de uma extensa e elevada planície.
- Vejam, lá está um grande palácio! - disse Loki, apontando para a construção, que mesmo de longe já era imensa.
Aquele era o castelo de Utgardloki, um dos reis de Jotunheim, o qual, embora o nome, não tinha parentesco algum com o acompanhante de Thor.
Na verdade, era um palácio tão alto que ao tentar avistar a mais alta de suas torres quase caíram todos de costas. Quando baixaram os olhos, novamente, deram-se conta de que os imensos portões estavam fechados.
- E agora, poderoso Thor? - disse o servo Thialfi, cocando a cabeça.
- Vamos tentar abri-los à força - disse o deus do trovão, apoiando as duas mãos na porta maciça, enquanto retesava os músculos das pernas para tentar entrar no palácio. Loki e o criado uniram-se aos esforços do deus, mas foi tudo em vão: as portas não moveram-se um único milímetro.
- Ufa!... - exclamou Loki, enxugando o suor da testa. - Por que não tentamos bater a aldrava?
De fato, havia uma gigantesca aldrava de bronze colocada no meio do portão, mas estava fora do alcance de qualquer um deles. Então, Thor, depois de estudar melhor a porta, descobriu que havia uma pequena fenda entre as duas pesadas folhas. Para os gigantes era uma fenda tão desprezível que seus olhos não podiam nem percebê-la, mas, para os visitantes, era uma passagem perfeitamente possível de ser atravessada - desde, é claro, que não se importassem em se espremer um pouquinho.
- Vamos entrar neste palácio nem que seja a última coisa que eu faça! - exclamou Thor, que possuía em grau admirável a virtude da persistência.
Thor se espremeu, então, até conseguir ultrapassar a estreitíssima fenda, sendo seguido imediatamente pelos dois companheiros.
- Ótimo! - exclamou Loki. - Já estamos dentro!
- Chhh! - fez Thor. - Temos de pegá-los de surpresa, senão nos expulsarão daqui antes mesmo que estejamos em seu salão. Ou esqueceu que deuses e gigantes são inimigos implacáveis?
Os três foram avançando, assim, pé ante pé, enquanto vozes retumbantes ecoavam pelos corredores. Por diversas vezes cruzaram com sentinelas postados à margem dos vastíssimos corredores, mas eles eram tão imensos em comparação com os intrusos, que, a menos que tivessem olhos nas canelas, jamais teriam sido capazes de percebê-los.
- É ali o salão dos gigantes! - disse Thor aos demais.
Tomando a dianteira, o deus escalou um pequeno banquinho e se fez anunciar dali com sua portentosa voz, que, no entanto, diante do vozerio assumiu as proporções diminutas do zumbido de um mosquitinho.
Loki, sempre apreciador do ridículo, seja humano ou divino, fazia um grande esforço para controlar o seu riso, enquanto que o criado Thialfi fingia ter perdido algo pelo chão. Tomando, então, Miollnir, o seu poderoso martelo, Thor começou a malhar o banco onde estava até fazê-lo em pedaços.
- Atenção, todos! Sou Thor e vim aqui para desafiá-los!
Algumas cabeçorras, atraídas pelo ruído do martelo, voltaram-se para a direção de onde provinha aquele minúsculo, mas agora nítido ruído. Ao avistar Thor, entretanto, puseram-se a rir, deliciados, apontando para os visitantes dedos enormes como toras de carvalho desprovidas de ramos.
- Oh, então, você é Thor, o famoso deus do trovão? - exclamou uma voz, postada na ponta da grande mesa onde estavam assentados os gigantes. Ela pertencia a Utgardloki, o maioral do lugar.
- Sim, é Thor, o matador de gigantes, quem está à sua frente! - esbravejou o deus num assomo verdadeiramente admirável de audácia.
- Oh, longe de nós querermos pôr à prova a veracidade de suas palavras - disse o líder dos gigantes, descobrindo os dentes num ar de evidente deboche, embora, interiormente, tivesse dúvidas se não seria mais prudente evitar um confronto com o famoso deus (vai que era mesmo verdade o que diziam de sua força...!).
- Muito bem, forasteiros, aproximem-se - disse Utgardloki, fingindo-se bom anfitrião. - Há sempre lugar à minha mesa para mais três bocas!
"Ainda mais deste tamanhinho!", disse ele à boca pequena (por assim dizer) aos seus vizinhos de mesa, que imediatamente caíram na gargalhada.
- Mas, para que desfrutem de minha generosa hospitalidade - continuou a dizer Utgardloki em tom grandiloqüente -, terão os três de nos brindar com algum prodígio de força ou habilidade!
Loki, que não estava para muitas conversas, e sentia dentro do estômago um buraco do tamanho daquelas criaturas, adiantou-se e disse:
- Quanto a mim, o único prodígio do qual me sinto capaz, neste instante, é o de comer mais do que qualquer um de vocês!
- Muito bem, está aceito o desafio! - disse um deles, erguendo-se no mesmo instante. Era Logi, um dos gigantes mais fortes - e seguramente mais esfomeado - de todo o bando. - Vamos começar o desafio imediatamente!
Loki sentou-se em frente ao gigantesco Logi e, logo, travessas imensas de carne foram postas diante dos dois. Para Loki, a carne foi servida sob a forma de pernis, enquanto, para o gigante, foram servidos bois inteiros.
Dado o sinal, os dois competidores arreganharam os dentes e lançaram-se às suas porções com terrível voracidade. Loki fez jus à sua fama de voraz comilão, tendo esvaziado a sua travessa no mesmo espaço de tempo que o adversário. Só que este, como a perfeita personificação da Fome, não só devorara a sua porção como também os ossos e a travessa, o que lhe valeu a vitória.
- Muito bem, agora é a sua vez, nanico! - disse Utgardloki a Thialfi, que aguardava em suspense a sua vez de provar o seu valor.
- Bem, se eu tenho alguma virtude, senhor gigante - foi dizendo o criado de Thor - é a de ser o mais veloz dos mortais. Por isto, desafio qualquer um dos presentes a me vencer numa corrida.
Hugi, o mais veloz dos gigantes ali presentes, bradou da outra ponta da mesa:
- Vamos, saiam da frente, que esta é comigo!
Thialfi voltou o rosto, rapidamente, em direção ao distante local de onde a voz soara, mas antes que seu eco tivesse terminado, ele já estava diante dele.
- Então, nanico, está pronto? - disse Hugi, com um sorriso superior.
O rei ergueu-se e foram todos para uma pista que havia no lado de fora do castelo. Os dois, Thialfi e Hugi, foram colocados lado a lado, até que Utgardloki concluiu, a seu modo, a contagem regressiva:
- Dez! nove! oito! sete! quatro! seis!... Dez! nove! oito! cinco! dois!... Dez! nove! sete! seis! meia dúzia!... Ora, inferno, partam de uma vez!
Os pés de ambos começaram a correr com tal agilidade, que ficou muito difícil observá-los. Mas, com um esforço maior podia-se divisar as pernas de Thialfi, as quais alternavam-se com tamanha rapidez que pareciam imóveis.
De repente, entretanto, percebeu-se num pasmo, que Hugi já estava voltando!
De fato, o gigante fora tão rápido, que chegara ao fim da pista e retornava agora, cruzando por Thialfi, com uma grande risada. E, antes que o pobre Thialfi conseguisse completar o trajeto, o gigante voltou e venceu-o pela segunda vez.
Com Thialfi derrotado, chegara a vez de Thor enfrentar o desafio. Como estivesse muito sedento, propôs aos gigantes uma disputa de bebida.
- Tragam-me o maior chifre que houver, repleto de hidromel e beberei tudo de um único gole! - disse o deus, confiante em seu fôlego prodigioso. Utgardloki trouxe um chifre verdadeiramente imenso - tão imenso, que não se podia enxergar a sua extremidade - e o colocou diante de Thor.
- Pronto, aqui está, falastrão! - disse ele. - Se for mesmo forte, beberá seu conteúdo de um só trago. Se não for tão resistente assim, precisará de dois grandes tragos. Agora, se for um maricas, então, terá de dar três longos goles. Mas, não creio que tal aconteça, pois nunca ninguém tão fraco assim se apresentou por aqui! - acrescentou o gigante, empinando logo o chifre.
Thor encheu os pulmões de ar e colou a boca ao bocal, puxando todo o conteúdo do gigantesco chifre. Suas bochechas ficaram infladas e lustrosas, mas tão logo engoliu aquele grande trago, percebeu que ainda havia muito para ser engolido. Na verdade, a marca que indicava a quantidade existente dentro do recipiente mal se movera. Derrotado na primeira tentativa, Thor tomou novo fôlego e puxou nova e assustadora quantidade para dentro da boca, que quase estourou de tanto líquido. Mas, foi em vão: a marca permanecia praticamente inalterada. Os gigantes entreolhavam-se com risos e caretas.
- Não quer tentar uma última vez? - disse Utgardloki ao pé do ouvido de Thor.
Enchendo os pulmões de ar, o deus sorveu um último e prodigioso gole, a ponto de o hidromel escorrer-lhe pelas barbas numa verdadeira cachoeira.
- Desisto! - disse Thor, sabendo que nem em mil goles conseguiria beber todo o conteúdo.
- Que pena! - exclamou Utgardloki, falsamente condoído. - Pensei que o poderoso deus fosse um pouquinho mais resistente! Mas, como você é uma divindade muito respeitada, vou dar-lhe uma nova chance em um novo desafio! - disse Utgardloki, fazendo sinal para que trouxessem o seu grande gato cinzento.
- Temos aqui uma nova competição da qual participam somente as crianças: consiste apenas em levantar do chão meu gato de estimação. É lógico que eu não teria me atrevido a propor tal brincadeira ao grande Thor seja não tivesse comprovado a sua lamentável fraqueza!
O magnífico gato, apesar de também ser gigantesco, não parecia, de fato, representar um desafio acima das forças de Thor. Por isso, o deus acolheu o desafio com um sorriso de alívio.
Thor aproximou-se do bichano, dizendo: "Aqui, Mimi, aqui!" O gato aproximou-se de mansinho com suas patas branquinhas da cor da neve e ronronou suavemente. Então, o deus envolveu o gato em seus poderosos braços e começou a suspendê-lo - ou a imaginar que o suspendia, pois na verdade o gato apenas esticara um pouco as suas pernas para dar a impressão de que cedia aos esforços do deus.
- Está difícil, deus do trovão? - disse o gigante, escarnecendo.
Todos os demais riam fungado, fazendo coro com o rei, inclusive, o gato, que parecia ter na boca ornada por elegantes bigodes um sorriso sutil de ironia.
Por mais que Thor forcejasse, nada conseguiu, além de fazer o gato erguer uma de suas patas brancas, o que pareceu, por fim, mais uma condescendência do bichano do que qualquer mérito seu.
- É fracote mesmo! - disse um dos gigantes, dobrando-se de tanto riso.
Utgardloki balançava a cabeça numa fingida desolação.
Thor, entretanto, tornara-se a tal ponto irado por causa de tantas humilhações, que resolveu lançar um último desafio aos atrevidos gigantes.
- Está bem, sou pequeno - disse o deus, espumando de raiva -, mas quero ver qual de vocês está disposto a lutar comigo!
- Meu amigo - disse Utgardloki, olhando para os homens sentados nos bancos -, aqui os fortes só brigam com os fortes. No entanto, conheço alguém a quem talvez você possa fazer frente. Chamem Elli, a minha velha ama - disse o rei a um lacaio.
Dali a instantes entrou no salão uma velha de cabelos ralos e brancos, que endereçou a Utgardloki um sorriso deserto de dentes.
- Velha Elli, aí está um desaforado que diz poder derrotá-la! - disse o gigante à velhota, que, no mesmo instante, começou a arregaçar as saias, preparando-se para o embate. - Mostre a ele quem é o mais forte por aqui!
O deus e a velha postaram-se no centro do salão e a um sinal do gigante a luta começou. Thor arremessou-se à adversária com certa cautela, pois não pretendia maltratar aquela velha centenária. Mas, ela não era nada daquilo que aparentava, e dando um pulo para o lado, que fez inveja ao próprio gato, esquivou-se do ataque e veio postar-se às costas de Thor. Em seguida, aplicou uma valente chave em um dos braços do adversário com tal força, que Thor viu-se obrigado a se ajoelhar e a reconhecer a derrota.
Com isto, encerraram-se as disputas. Thor e seus humilhados companheiros receberam um leito cada qual para descansar antes de partir na manhã seguinte. Tão logo os primeiros raios do sol surgiram no horizonte, já estavam os três prontos para ir embora daquela terra infamante. Utgardloki mandou que lhes servissem uma mesa repleta de iguarias e bebidas. Depois, acompanhou-os até a porta da cidade, e, antes que partissem, perguntou:
- E, então, Thor, gostou da viagem e da hospitalidade?
- Se lhe agrada saber, direi que nunca fui tão humilhado em toda a minha vida! - disse o deus, cabisbaixo, louco para ganhar a estrada.
- Bem, agora já pode se acalmar - disse Utgardloki, tão logo haviam transposto os portões do palácio. - Agora, que você está fora da cidade posso lhe contar o que, verdadeiramente, ocorreu.
Os três entreolharam-se, sem nada entender.
- Palavra de honra, se soubesse que possuía uma força tão descomunal e companheiros tão extraordinariamente competentes jamais teria permitido que aqui entrassem. Na verdade, iludi-os o tempo todo com minhas artimanhas. Primeiro, na floresta, onde amarrei a mochila com arame para que não pudesse desamarrá-la.
- Você? - exclamou Loki.
- Sim, Skrymir era eu mesmo! - disse Utgardloki com um grande riso. - Aquelas três pancadas que me desferiu com seu martelo, seguramente, teriam-me esfacelado o crânio, caso me tivessem realmente atingido! Mas, fui hábil o bastante para enganá-lo no momento certo, entrando para debaixo da terra, de modo que suas pancadas atingiram enormes montanhas, produzindo aquelas fendas profundas, que podem ver lá adiante.
Os três asgardianos olharam naquela direção e viram três grandes abismos que o martelo de Thor abrira naquelas encostas.
- Da mesma forma, foram enganados nas outras disputas - continuou a dizer o gigante. - O adversário de Loki na disputa da comilança não foi outro, senão o próprio Fogo, que devora tudo quanto encontra pelo caminho. Já aquele contra quem Thialfi disputou a corrida era o Pensamento, sendo impossível a qualquer um correr na mesma velocidade que ele.
Loki e Thialfi pareceram aliviados ao descobrir que não haviam sido humilhados, afinal.
- Quanto a você, poderoso Thor, jamais poderia ter esvaziado aquele imenso chifre, pois ele estava ligado na outra ponta ao inesgotável oceano; mesmo assim, se olhar bem na direção do mar, verá que ele está com a maré bem baixa, o que prova a quantidade prodigiosa de água que engoliu! Quanto ao gato, cumpre dizer que operou um feito não menos invejável, pois aquele bichano era na verdade a serpente Midgard, a vasta serpente que contorna toda a terra com suas longas espirais. Ficamos verdadeiramente espantados quando vimos que havia conseguido erguê-la um pouco acima do chão. Mas, de todas as derrotas, com certeza, a menos infamante foi a que lhe pareceu a mais vergonhosa: pois aquela velhota contra a qual lutou era a própria Velhice e jamais alguém pôde vencê-la em tempo algum.
Ao escutar o fim do discurso de Utgardloki, Thor mostrou-se tão furioso - pois, afinal, havia feito papel de bobo diante de toda aquela corte - que ergueu seu martelo Miollnir, pronto a aplicar um castigo de verdade ao gigante. Este, porém, percebendo o perigo, desapareceu instantaneamente.
Sem se dar por vencido, Thor retornou ao castelo para destruir tudo, mas quando lá chegou, uma última decepção o aguardava: o castelo havia desaparecido, como num passe de mágica!
Texto retirado de: http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAdtgAL/a-s-franchini-carmen-seganfredo-as-melhores-historias-mitologia-nordica
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